01. ╱ fim dos tempos.
EM TODAS AS DÉCADAS, algo surgia para marcá-la na história de alguma forma inesperada, embora, desta vez, fosse uma tragédia inevitável de impedir que o fim do mundo ocorresse, conhecido como o Fim dos Tempos.
Há bilhões de anos, o planeta Terra já havia sido alvo de asteroides ou da lua, e cidades foram extintas para que outras começassem, e desde então, todos sabiam ― por algum motivo desconhecido ― que o fim do mundo chegaria; poderia demorar bilhões para isso, mas claro, meros números calculados no passado sobre a probabilidade do que aconteceria no futuro se alteraram da noite para o dia sem avisos prévios ou noticiário.
O que deveria acontecer daqui a um bilhão de anos, aconteceria hoje, e ninguém estava preparado para o último dia, do último ano, da última década que o mundo teria.
As gotículas de suor frio escorriam pelo rosto sereno da jovem mulher que dormia; seu corpo se remexia debaixo dos lençóis que a aqueciam do clima úmido da Tailândia. Seus devaneios estavam tão próximos da realidade que ela escutava as sirenes, observava os piores desastres ― aqueles que causavam a aniquilação da vida terrestre. Ela corria pelas ruas desconhecidas, desviando-se dos escombros e das pessoas desesperadas sem rumo. Suas botas pretas e roupas estavam sujas de poeira e manchadas de um sangue que não era seu.
Mísseis cortaram o céu, e uma repentina explosão à distância ecoou pelas avenidas com uma densa onda de poeira vindo em sua direção, devastando tudo o que restava.
Um sussurro suave além da camada do sonho a chamou; era uma voz tranquila e doce, mas quando buscou em seu sonho, não encontrou. Assim que a radiação da bomba a atingiu, o vento soprando seus curtos cabelos, subitamente Nia despertou.
As luzes vermelhas piscavam dentro do bunker, disparadamente. Era um alerta de aniquilação. Antes de poder se mover, grunhiu pelo corpo dolorido dos treinos, esfregando as mãos nas articulações e afastando o cabelo do rosto, um tanto exausta. Reparando que o toque sobre seu ombro não era coisa de sua cabeça, Nia dirigiu o olhar à mulher de aparência jovem e cabelos longos e loiros, que lhe dava um mero sorriso; era sua mãe, Kendra.
Olhando em direção à mesa no canto do quarto, observou algumas coisas organizadas, mas antes de questionar, Kendra segurou as mãos de Nia, que deixou um sorriso preocupado escapar, um tanto confusa. E de modo recíproco, apoiou a testa no ombro de sua mãe, deixando um riso escapar.
― O pai fez Kimchi? ― perguntou.
Kendra sorriu nasalado, ajeitando os cabelos de Nia, logo revirando seus olhos âmbar.
― Ele está ocupado neste momento ― a mulher a admirou pelo que pareceu uma eternidade de segundos, antes de dizer: ― Já chegou a hora, e está acontecendo exatamente como imaginávamos, por isso... você tem que ir, Nia.
Nia uniu as sobrancelhas, desfazendo-se dos lençóis. Ela não estava brava, não, ela estava com medo.
― O que houve para chegarmos a isso? Até ontem tudo estava bem! ― Nia espreitou suas roupas dobradas e postas na cadeira. ― Não pode ter chegado agora... não, isso é loucura!
― É o fim dos tempos, minha querida, todos já aceitamos esse final desde o início, mas ele... ele não é feito para pessoas como você ― a mulher murmurou serenamente.
Às vezes desejava ter a paciência e a calma de sua mãe, porque desde que teve consciência de quem ela era, sempre se recordou de Kendra da mesma maneira.
― Você tem que ir agora. Não dá mais para esperar, Nia.
― Já havíamos conversado sobre as probabilidades de o 'nada' vir até mim, eram incalculáveis as chances! ― Nia exclamou, absorta pela confusão. Seus olhos se prenderam imediatamente quando seu pai entrou no local. ― Eu não irei a lugar nenhum sem vocês.
Khallan Jittatad, seu pai, que lhe sorriu dolorosamente, abriu os braços indo até Nia e a isolando em um abraço apertado, depositando um selar em sua testa.
― Não somos como você, Nia. E, se você pode fugir disto, apenas faça! Não adianta pensar em nós, isso só te impedirá de viver ― ele acariciou os cabelos escuros dela antes de lhe segurar o rosto, admirando-a. ― Você sempre esteve pronta para isso.
― Não posso levá-los comigo? ― ela indagou, sua voz trêmula enquanto seus olhos lacrimejavam, observando-os negar. ― Eu não estou preparada para perdê-los.
― Já fizemos o que devíamos, Nia ― disse Kendra, pegando a roupa na cadeira e a entregando, pousando sua mão sobre a dela. ― Você foi o motivo da minha felicidade assim que nasceu, mesmo com seus dons sendo algo realmente de primeira viagem para mim e seu pai ― ela deixou um sorriso escapar.
― Leve sua maleta ― proferiu seu pai, estendendo a maleta comprida para Nia, que a observou. ― Não sabemos quem poderá procurar por você, mas, saberá o que fazer quando as situações se tornarem difíceis.
― Eu não machucarei pessoas com os meus poderes ― ela murmurou, quase como se repetisse para si mesma.
― Mas, começará a fazê-lo quando perceber que as pessoas não se importam com isso, apenas querem te machucar por ser diferente ― respondeu Khallan, a observando. Seus olhos lacrimejavam, mas o mais velho não quis demonstrar sua tristeza. ― Vista-se, Nia.
Ela não contestou após isso.
Nia vestiu sua roupa inteiramente preta com alguns apetrechos escondidos sob sua jaqueta. Ela amarrou os coturnos vendo a estranha similaridade com seu sonho. Talvez não estivesse somente sonhando, talvez estivesse vendo o que aconteceria consigo e com todos em breve.
Kendra verificou o relógio no pulso e olhou o ambiente tingido pelas luzes de alerta. Nia observou como seus pais se olhavam, era uma despedida silenciosa entre eles, e entre ela. Provavelmente, já haviam se acostumado com a ideia há muito tempo, que já não sentiam-se com medo ou desesperados.
― O tempo está acabando ― Khallan alertou, ajudando Nia a também colocar as poucas roupas dentro da maleta.
― Para quando devo ir? ― perguntou, sem parecer magoada. Entretanto, seu peito tinha uma dor incessante, ela não queria ir. Ela queria ficar com eles.
― Eu não sei, mas, independente de para onde for, encontre pessoas que realmente se importem com você ― Kendra disse, deixando uma lágrima escorrer, dirigindo brevemente seu olhar à tatuagem de Nia no ombro. ― Nós amamos você, Nia.
― Eu os amo mais ― ela sorriu, mordiscando os lábios para conter a tristeza. ― Se eu viajar no tempo, não poderei voltar segundos, apenas anos... e então o que farei em um lugar desconhecido?
― Hazel lhe encontrará, mas será melhor se você o fizer primeiro. Ele não permitirá que você se perca ― as palavras de sua mãe eram reconfortantes, apesar de também serem dolorosas.
― Se os Hargreeves conseguirem fugir disto, eles também o ajudarão, contanto que explique a eles quem você é ― disse Khallan, recebendo um olhar furioso de sua mãe, que o fez ajeitar a postura. ― Mas, jamais confie em Reginald, Nia.
Ela assentiu.
Fechando os lacres de sua maleta, segurando-a firmemente em sua mão, Kendra estendeu a ela um único pacote de chiclete, os quais adorava quando era mais nova. Nia deixou um sorriso breve escapar.
Rodando uma de suas facas no indicador, Nia dobrou a perna enfiando-a dentro do coturno. Ajeitou as outras facas que se escondiam por debaixo de sua roupa, e no seu coldre de perna. Por último, ela arrumou os curtos cabelos, sorrindo-se tristemente para si mesma.
― Quantos minutos? ― ela perguntou, na esperança que dissessem "muitos".
― Um minuto apenas ― disse Kendra ao verificar novamente o relógio no pulso. ― É só isso que temos.
Nia acenou com a cabeça enquanto suas unhas fincavam em sua palma; seu coração disparado e a sensação estranha que percorria seu corpo só lhe fazia querer desistir. Mas, ela apenas fingiu estar tudo bem, colocando um chiclete na boca.
― Se proteja e além de tudo...
― ...Seja feliz, Nia ― acrescentou seu pai. Ambos se abraçaram para observá-la. ― Vá!
As luzes vermelhas não haviam cessado em nenhum momento, mas ela desejou que tudo aquilo fosse somente um outro pesadelo, que quando acordasse, poderia comer o kimchi que seu pai preparava todas as manhãs. Ela admirou por breves segundos o que foi sempre seu lar, a cama bagunçada, as paredes cinzentas com desenhos (normalmente só havia personagens de jogos, mas ficou alguns segundos a mais sobre o mural de fotos com os seus pais).
― Vocês estarão comigo? ― perguntou, deixando finalmente as lágrimas escorrerem.
― Aonde você estiver, Nia ― sua mãe já chorava, porém, Khallan se mantivera firme para que ela não desistisse de consertar as coisas e seguir em frente. ― Nós estaremos sempre com você.
Nia assentiu dando um mero sorriso, com suas mãos descontraídas, criou um sulco e as estendeu criando esferas azuis, que logo se tornaram arroxeadas. Admirando a esfera densa sobre sua palma, um feixe de luz surgiu em meio ao local e não evitando olhar seus pais como se fosse a última vez, Nia fitou as próprias mãos admirando as esferas do tempo em suas palmas e com um passo, ela atravessou o portal.
Fechando seus olhos por um breve momento até que estivesse confortável, sentiu a ventania contra seu rosto, tentava calcular tudo novamente do que já havia feito milhares e milhares de vezes desde que descobriu sobre seus poderes e eles foram testados. Apertava firmemente o suporte da maleta, não podiam se separar no tempo, ou tudo o que era bom se perderia.
A ventania passou e o barulho de buzinas soaram pelo redor, mas tudo o que se viu na saída daquele mero beco, foi um lugar diferente do que estava acostumada.
Pisando de modo que os saltos de seu coturno ecoassem pelo chão de cimento, olhou para os lados encarando o beco vazio, janelas de casas fechadas por cortinas cheias de estampas. Sendo arrastado pela brisa, um jornal na lata do lixo voou até seus pés prendendo ao lado de sua bota.
Nia Jittatad agachou-se o pegando, desvirando a página, franziu a testa logo levantando o olhar e olhando as pessoas ao outro lado da rua, voltando a fitar a página em preto e branco, verificou a data no cabeçalho do jornal:
― 15 de outubro de 1963 ― murmurou. Um riso indignado escapou de seus lábios, amassando o jornal ao olhar em volta. ― E ainda dizem que não tem como piorar.
⋯ ⁺ ZERO: UMBRELLA ACADEMY
✿⠀· ☂️⠀. carter dardenne, 2020
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